Existe um ser que mora dentro de mim como se fosse a casa dele, e é. Trata-se de um cavalo preto e lustroso que apesar de inteiramente selvagem – pois nunca morou antes em ninguém nem jamais lhe puseram rédeas nem sela – apesar de inteiramente selvagem tem por isso mesmo uma doçura primeira de quem não tem medo: come às vezes na minha mão. Seu focinho é úmido e fresco. Eu beijo o seu focinho. Quando eu morrer, o cavalo preto ficará sem casa e vai sofrer muito. A menos que ele escolha outra casa e que esta outra casa não tenha medo daquilo que é ao mesmo tempo selvagem e suave. Aviso que ele não tem nome: basta chamá-lo e se acerta com seu nome. Ou não se acerta, mas, uma vez chamado com doçura e autoridade, ele vai. Se ele fareja e sente que um corpo-casa é livre, ele trota sem ruídos e vai. Aviso também que não se deve temer o seu relinchar: a gente se engana e pensa que é a gente mesma que está relinchando de prazer ou de cólera, a gente se assusta com o excesso de doçura do que é isto pela primeira vez. Clarice Lispector
pensador
Um ator não é exatamente um ser humano. Mas pensando bem, quem é?
1 Um vago tom de opala debelou Prolixos funerais de luto de Astro E pelo espaço, a Oiro se enfolou O estandarte real livre, sem mastro.
Fantástica bandeira sem suporte, Incerta, nevoenta, recamada A desdobrar-se como a minha Sorte Predita por ciganos numa estrada ...
2 Atapetemos a vida Contra nós e contra o mundo. — Desçamos panos de fundo A cada hora vivida!
Desfiles, danças embora Mal sejam uma ilusão... Cenário de mutação Pela minha vida fora!
Quero ser Eu plenamente: Eu, o possesso do Pasmo. Todo o meu entusiasmo, Ah! que seja o meu Oriente!
O grande doido, o varrido, O perdulário do Instante O amante sem amante, Ora amado, ora traído ...
Lançar os barcos ao Mar De névoa, em rumo de incerto... Pra mim o longe é mais perto Do que o presente lugar.
...E as minhas unhas polidas Idéia de olhos pintados... Meus sentidos maquilados A tintas conhecidas ...
Mistério duma incerteza Que nunca se há de fixar... Sonhador em frente ao mar Duma olvidada riqueza ...
Num programa de teatro Suceda-se a minha vida Escada de Oiro descida Aos pinotes, quatro a quatro! ...
3 Embora num funeral Desfraldemos as bandeiras Só as cores são verdadeiras Siga sempre o festival!
Quermesse — eia! — e ruído! Louça quebrada! Tropel! Defronte do carrossel, Eu, em ternura esquecido...
Fitas de cor, vozearia — Os automóveis repletos: Seus chauffeurs — os meus afetos Com librés de fantasia!
Ser bom... Gostaria tanto De o ser... Mas como? Afinal Só se me fizesse mal Eu fruiria esse encanto.
— Afetos?... Divagações... Amigo dos meus amigos... Amizades são castigos, Não me embaraço em prisões!
Fiz deles os meus criados, Com muita pena decerto. Mas quero o Salão aberto, E os meus braços repousados.
4 As grandes Horas! — vive-las A preço mesmo dum crime! Só a beleza redime — Sacrifícios são novelas.
"Ganhar o pão do seu dia Com o suor do seu rosto..." — Mas não há maior desgosto Nem há maior vilania!
E quem for Grande não venha Dizer-me que passa fome. Nada há que se não dome Quando a Estrela for tamanha!
Nem receios nem temores, Mesmo que sofra por nós Quem nos faz bem. Esses dós Impeçam os inferiores.
Os Grandes, partam — dominem Sua sorte em suas mãos: — Toldados, inúteis, vãos, Que o seu Destino imaginem!
Nada nos pode deter; O nosso caminho é de Astro! Luto — embora! — o nosso rastro, Se pra nós Oiro há de ser! ...
5 Vaga lenda facetada A imprevisto e miragens — Um grande livro de imagens, Uma toalha bordada ...
Um baile russo a mil cores. Um Domingo de Paris — Cofre de Imperatriz Roubado por malfeitores.
Antiga quinta deserta Em que os donos faleceram — Porta de cristal aberta Sobre sonhos que esqueceram ...
Um lago à luz do luar Com um barquinho de corda... Saudade que não recorda — Bola de tênis no ar...
Um leque que se rasgou — Anel perdido no parque — Lenço que acenou no embarque De Aquela que não voltou ...
Praia de banhos do sul Com meninos a brincar Descalços à beira-mar, Em tardes de céu azul...
Viagem circulatória Num expresso de vagões-leitos — Balão aceso — defeitos De instalação provisória ...
Palace cosmopolita De rastaquoères e cocottes — Audaciosos decotes Duma francesa bonita ...
Confusão de music-hall, Aplausos e brou-u-ha — Interminável sofá Dum estofo profundo e mole. . .
Pinturas a "ripolin", Anúncios pelos telhados — O barulho dos teclados Das Lynotype do Matin...
Manchete de sensação Transmitida a todo o mundo — Famoso artigo de fundo Que acende uma revolução ...
Um sobrescrito lacrado Que transviou no correio, E nos chega sujo — cheio De carimbos, lado a lado. . .
Nobre ponte citadina De intranqüila capital — A umidade outonal De uma manhã de neblina ...
Uma bebida gelada — Presentes todos os dias. . . Champanha em taças esguias Ou água ao sol entornada ...
Uma gaveta secreta Com segredos de adultérios... Porta falsa de mistérios — Toda uma estante repleta:
Seja enfim a minha vida Tarada de ócios e Lua: Vida de Café e rua, Dolorosa, suspendida —
Ah! mas de enlevo tão grande Que outra nem sonho ou prevejo... — A eterna mágoa dum beijo, Essa mesma, ela me expande ...
6 Um frenesi hialino arrepiou Pra sempre a minha carne e a minha vida. Fui um barco de vela que parou Em súbita baía adormecida ...
Baía embandeirada de miragem, Dormente de ópio, de cristal e anil, Na idéia de um país de gaze e Abril, Em duvidosa e tremulante imagem ...
Parou ali a barca — e, ou fosse encanto, Ou preguiça, ou delírio, ou esquecimento, Não mais aparelhou... — ou fosse o vento Propício que faltasse: ágil e santo ...
...Frente ao porto esboçara-se a cidade, Descendo enlanguescida e preciosa: As cúpulas de sombra cor-de-rosa, As torres de platina e de saudade.
Avenidas de seda deslizando, Praças de honra libertas sobre o mar Jardins onde as flores fossem luar; Lagos — carícias de âmbar flutuando ...
Os palácios de renda e escumalha. De filigrana e cinza as catedrais — Sobre a cidade a luz — esquiva poalha Tingindo-se através longos vitrais ...
Vitrais de sonho a debruá-la em volta, A isolá-la em lenda marchetada: Uma Veneza de capricho — solta, Instável, dúbia, pressentida, alada...
Exílio branco — a sua atmosfera, Murmúrio de aplausos — seu brou-u-ha... E na praça mais larga, em frágil cera, Eu — a estátua "que nunca tombará"...
7 Meu alvoroço de oiro e lua Tinha por fim que transbordar... — Caiu-me a Alma ao meio da rua, E não a Posso ir apanhar!
Atriz, professora de Artes em geral, artista plástica.
Um pouco inventora. Um bocado sonhadora.
Esperançosa, na maior parte do tempo. Na outra, um pouco desconfiada. Amante da boa mesa, de bons vinhos, bons amigos, boas conversas. Cinéfila assumida.Devoradora de livros. E de rock'n'roll!!! Ainda acreditando num mundo melhor.Mãe full time.
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